sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Eu quero


Foto: Alex - olhares.com

"Eu não quero ter razão, eu quero ser feliz"

(Ferreira Gullar)


terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Anestesia

Foto: Bubbles
Melhor é a anestesia. Não sofrer, não saber, nada ver. A ausência de sentidos que evita o envolvimento com tudo aquilo que é externo, que foge ao nosso controle. Anestesiados, distantes da dor que nos arranca a paz, que nos tira o sono, que desatina a alma. A dor nos arranca dos nossos desejos, porque enquanto dói tudo o mais parece não ter a menor importância. Não saber é uma forma de evitar o conhecimento do indesejável. Não ver, faz calar a dor que sente o coração. Não sofrer é negar a ligação com o outro, assumir uma força que na realidade somos incapazes de ter. Paralisados, inertes a tudo aquilo que deveria nos fazer mover, sentimo-nos mais seguros pra caminhar pelo caos da vida, tão cheia de improvisos e imprevistos com os quais acabamos tropeçando. Anestesiados, o tropeço perde a força, a queda não nos causa dor, as traições parecem imperceptíveis e os amores ficam pra depois. Assim, acredita-se, sofrem menos os seres humanos, tão frágeis e vulneráveis neste jogo da vida que só tem fim quando acaba. E se não acaba, melhor é estarmos anestesiados diante da violência, da corrupção, dos erros, das traições, das dores e de tudo o que nos leva ao sofrimento, este sentimento tão desconfortável. Não se envolver é a melhor maneira que encontram para se afastar do conhecimento do desagradável. Estamos mal acostumados com o desejo de uma vida ilusória, tão cheia de satisfações às nossas vontades, de mimos que não vivemos mas insistimos em ter. O que foge a esta vida de conto de fadas é negado através da paralisia de nossas ações, este efeito narcotizando que nos inibe dos gestos. Sofro demais, alguém me disse. É um sofrimento de quem lhe poupou o direito a anestesia nos momentos que foi preciso sofrer. Não me privo do direito a sensibilidade. Sou movida ao toque, ao gosto de sentir a vida ao meu redor, pelo meu corpo ainda que vez ou outra isto tenha que se manifestar doído. Prefiro a dor que a delícia de passar pelo fogo sem sentir o calor que este nos causa na pele, porque não sentindo o calor que antecede a queimadura, corro o risco de tornar meu corpo inteiro em chamas e perder a vida pelo simples desejo de me tornar insensível. Prefiro viver a vida por inteiro, passar pelo sofrimento da maneira que ele vier. Caminhar pela vida, por entre as pedras, misturar meus sentimentos aos dos outros, não me acovardar diante dos riscos de uma vida por inteiro. Sofro, talvez até um pouco demais. Mas sofro porque não me permito evitar o toque da vida. Sofro porque a vida me toca, isto me significa e só assim a vida me faz sentido.


Há de ter coragem




"O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem".
Guimarães Rosa

Como um girassol

Foto: José Ferreira

A chuva não cai a muito tempo ao redor. Anda tudo tão seco, tão cinza e sem cor. Não tem graça o que vejo. Os noticiários já não me contam o que quero ouvir. As conversas são desagradáveis como fofocas de vizinhas pessimistas. A chuva, quando cai, é granizo. Destrói casas, sonhos, amores. O amor que acredito não está nas esquinas, nas novelas nem nas telas de cinema. Está aqui, dentro de mim. Apenas os meus olhos vêem o que vejo. Não o que a minha visão permite ver, mas o que a minha crença me faz enxergar. É difícil ver sozinha eu sei, as pessoas acreditam mais na coletividade ainda que seja ela uma grande mentira. Eu não, sou a verdade que acredito ser. As coisas boas que acredito que existem por aí, em algum lugar deste mundo, ainda que escondido de tanta imundície. O solo está árido, seco, trincado. As flores morrem, murcham como as fantasias das pessoas que amo têm morrido aos poucos. Mas eu insisto em regar meus sonhos e distribuir sementes. Ainda que eu seja a única flor a brilhar, não posso desistir. Meus sonhos são regados em fé, esperança, solidariedade e amor ao próximo. É incrível, mas por mais que o mundo esteja submerso em desafetos, eu ainda amo as pessoas ao meu redor por piores que elas pareçam ser ou estar neste momento. Sei que as vezes parece não valer a pena, que pode parecer uma palhaçada e que esta minha teimosia em ser feliz pareça uma grande bobagem. Sei que muitos me consideram tola, louca ou algo afim, não me importa. Se tudo acabar assim, infértil, estarei eu segurando a única e última flor, tentando trazer nas mãos o girassol que eu acredito ser a alegria que o mundo precisa, não mais que isto.


Outro final pro mesmo filme

Foto: Ana Mokarzel

Joaquina não acreditou. Desta vez, pensou que seria diferente. Teve alguma dúvida no começo, já que não é moça de se jogar sem medir os riscos. É arisca, esperta. Tinhosa, esta menina. Tem coisas na vida que só Joaquina via, mais ninguém. Nem tinha olhos maiores que o da maioria das outras moças da cidade, mas enxergava coisas que nenhuma delas via ou havia visto antes. Devia ser culpa dos óculos, embora eu duvide disto. O que não via, Joaquina imaginava. E bota imaginação fértil nesta menina. Não tinha adubo melhor no mundo não. Mas nem toda esta imaginação e intuição de Joaquina evitou que ela se decepcionasse mais uma vez. Aliás, só piora. Não que tenha se decepcionado exatamente igual às vezes de antes. Estava um pouco diferente, é verdade. Mas parece, pelo menos pra ela, que lá na frente vai terminar tudo igualzinho ela costumava ver. O moço diz que quer. Joaquina se apaixonada e resolve se envolver. O moço fica com medo e desaparece, ou faz de desentendido que é a mesma coisa de fazer desaparecer a coragem que homem costuma não ter. Era feito um filme repetido que ela já tava cansada de assistir. Logo Joaquina, que nunca havia ido ao cinema, mas já era feito protagonista de novela das seis. Mas desta última vez, ela chegou a pensar que o filme era outro. Entrou na sessão feito gente grande. Se aprontou com outro vestido e sentou no banco, ao lado da janela, que era feito o banco de cinema, e se preparou para as cenas de um amor que definitivamente daria certo. A sessão começou mas era como se não tivesse começado, já que nada acontecia. Mocinho e mocinha estavam distantes. Nada de beijos, nem declarações de amor. E já era os 30 minutos iniciais de uma história que parecia não ter começado e, portanto, parecia não ter fim. Joaquina não acreditou. Ela havia se preparado para uma cena nova, uma história diferente da sua velha e conhecida. Ela estava disposta a acreditar no amor que acontecia de verdade e não naquelas que ela via nas ruas e na sua vida tão cheia de promessas não cumpridas. Joaquina sabia-se uma mulher bonita. Despertava a atenção dos rapazes da cidade, era verdade. Mas não se sabe porque, eles não se aproximavam tanto dela quanto ela gostaria. Não sei se medo do seu jeito autêntico, ou qualquer outra bobagem que impede as pessoas de viver o amor. Joaquina não tinha mais medo de amar. O que se sabe, é que apesar da decepção de Joaquina com aquela noite, mais uma vez ela iria ao cinema. Lembro que, não o cinema dos outros, no cinema da gente, mas no cinema que ela acreditava ser o exibidor da sua vida. Lá, ela conseguia ver do lado de fora o que acontecia dentro dela. Mais uma vez, numa outra noite como em tantas outras próximas, Joaquina sentaria ali naquela poltrona imaginando um novo filme, de novos atores, de histórias mais emocionantes. Não era moça de desistir fácil. Insistia naquela viagem diária em busca do amor. Sentava sempre no mesmo banco, olhava sempre a mesma janela. E embora já tivesse assistido a todos os filmes da locadora da sua imaginação, passaria o tempo que fosse preciso buscando outros filmes, novas histórias e um amor como os de cinema, daqueles que ela acredita encontrar qualquer dia, naquela próxima estação.


Vida Virtual

Foto: Karina Bertoncini

Desde pequena, aprendeu que tudo estava ao alcance de suas mãos. Não que fosse mimada, isto não vem ao caso agora. É que ela, cresceu vendo as coisas todas surgirem na sua frente, numa tela de computador. Se queria um brinquedo novo, o pai, ou a mãe, iam lá e clicavam em "compra" e pronto, era só sentar no sofá e assistir o seu desenho preferido que logo logo o correio entregaria o seu brinquedo, novinho em folha. Nunca experimentou ir a lojas de brinquedos e sofrer a indecisão da compra, tocar um e outro, ter dúvidas ou querer levar os dois. Ela simplesmente via na tela, da televisão ou do computador, pedia e, quase sempre que possível, o seu sonho estava inteiramente realizado, sem o menor sacrifício. Assim não foi diferente quando cresceu. Lia seus livros pela internet. Assistia seus filmes pelo computador, sem se dar ao trabalho de ir até a locadora. Comprava seus cremes e perfumes sem sair de casa. Mantinha-se por dentro da moda, antes mesmo de ela sair às ruas. Até a faculdade que optou fazer foi via internet. Era melhor do que ter que enfrentar o trânsito e a convivência com tantas pessoas chatas que não escolheu para passar 4 ou 5 anos da sua vida ao lado. Seus amigos, eram selecionados a dedo. Isto mesmo, um clique e eles logo estavam na lista de amigos do orkut. Conversavam longas horas no MSN, sem interrupções. Eram confidentes, sabiam tudo umas das outras, sem jamais terem se visto pessoalmente. Não que fosse tímida, mas não tinha paciência para ficar frente a frente com alguém. Não sabia para onde olhava, fica vermelha, não sabia onde pôr as mãos enquanto falava. Na internet era mais fácil, não tinha destas coisas. se quisesse ver ligava a câmera e pronto, a emoção devia ser a mesma que estar junto pessoalmente. É, devia ser, já que ela nunca havia falado com desconhecidos assim, pessoalmente. Por isto, nunca beijou na boca. Quer dizer, beijou. Outro dia à noite, depois de conversarem durantes horas e o garoto insistir muito dizendo que já a amava. Conversavam já há uns 3 meses, todas as noites, umas três ou quatro horas por dia. Já era hora, dizia ele e ela também estava curiosa pra saber como era este tal de primeiro beijo. Queria ter o seu primeiro namoro. E aí, sem fechar os olhos que é pra não perder nenhum detalhe. Eles se aproximaram da web cam e e se deram um beijo. Sim, foi um beijo na boca. A lente ficou toda embaçada, como a sensação dentro dela. No dia seguinte, na página do orkut ela já não era mais solteira. Tinha agora um namorado, um namoro que ela acredita ser com o amor da sua vida.


Despertar

Foto: José Ferreira

Eles nos invadem, tomam conta de nossos pensamentos. Acompanham nosso sono. Deixam vida a nossa alma. Não nos permite morrer, nem parar. Dá continuidade à nossa vida, prossegue com nossos pensamentos. Desorganizados, desconexos. Uns dizem que são alucinações. Outros, o chamam de pura bobagem sem sentido. Seja como for, eles devem saber o que estão fazendo, embora na maioria das vezes seja tão complicado desvendar suas narrações. Embora às vezes louco ou alucinados, viraram sinônimo de planos e desejos. Não por acaso, porque tanto os sonhos quanto os nossos planos e desejos, têm a capacidade de nos levar mais além. Nos elevam pra mais alto. Enigmáticos. Misteriosamente reveladores de nós mesmos, daquilo que queremos, do que sonhamos. Na maioria das vezes nos esquecemos deles, não por não terem importância, é importante saber disto. Esquecemos porque a vida real, cotidiana do dia-a-dia, nos exige maior atenção e eles, os sonhos, acabam por então cair no esquecimento. Até que a gente adormece e então, outros tipos de sonhos vêem à nossa mente para mostrar que é necessário parar a vida um instante para que os nossos sonhos e desejos, voltem à tona. Sem sonhos, a nossa vida não faz sentido. Seríamos loucos, desconexos, tanto ou mais do que nossos sonhos parecem ser. Regulam a nossa realidade, organiza, ainda que desorganizadamente, os nossos pensamentos, as nossas lembranças. Nos mantêm dispostos para o um novo dia. Recarrega nossas funções, energiza nossas idéias. Mas sonhos não devem ser apenas aqueles que temos enquanto dormimos. Sonhos são para ser lembrados, cuidados, avaliados. Preste atenção no que eles dizem. Olhe mais atentamente. Disperdice seu tempo pensando um pouco neles, logo que despertar. É quando despertos que o nosso está pra começar.

Questão de tempo

Foto: Olhares.com

Apesar das regras, dos limites, tinha vontade de viver. Não era triste, a tristeza não era boa companhia. Ainda que trancada, apreciava o que acontecia do lado de fora e passava horas imaginando como tudo seria quando ela saísse dali. Desejava sair enquanto era criança, pra poder bincar de roda e esconde-esconde com seus amigos até então imaginários. Era sozinha, mas não se sentia só. Sua imaginação lhe trazia companhias que ela tinha certeza que ainda iria ter. Teria irmãos e iria brincar com eles no gramado do jardim. Cumprimentaria estranhos. Andaria de bicicleta por toda a vizinhança. Era alegre por saber que tudo aquilo não passava de uma barreira que ela ainda ia vencer. Era só uma porta, uma janela. Do lado de fora tudo acontecia, assim como todas as coisas que aconteciam dentro de sua cabecinha. Um dia, ela sabia, abriria aquela porta e o mundo estaria ali prontinho pra que ela pudesse acontecer.


Ledo engano

Foto: Sonja

Você que já aprendeu a caminhar e que parou de se agarrar às paredes com medo da queda. Você que se levanta, bate as mãos nos joelhos e segue o seu destino com um sorriso no rosto. Que salta obstáculos, que dá gargalhada de si mesmo quando falha vez ou outra porque conhece a graça de ser um ser humano. Você que não teme seus sonhos, que não se esconde deles como quem se acomodou a passar a vida inteira sentado no ponto de ônibus vendo o trânsito passar e as pessoas acontecerem. Você que acontece e faz o tempo todo. Que provoca seu destino, que arrisca correr os riscos que se corre pra chegar onde se quer. Você que já amou e não foi correspondido. Você que já quebrou tantas vezes a cara e ainda assim não se acovarda diante de tantas outras vezes que pode cair. Você que não pensa demais se vale ou não a pena e vai logo fazendo valer a pena tudo o que se vive, ainda que dure pouco ou que não pareça o suficiente. Você que é jovem, independente da idade. Que gosta de dançar. Que não tem medo de cantar, ainda que desafinado. Você que gosta de mar, rios e montanhas. Que se joga em cachoeiras ou salta de pára-quedas na vida das pessoas sem saber o que vai dar. Você que sonha em viver um grande amor, sem temer os pequenos que já viveu ou ainda há de viver. Você que acredita mais em você, que em distâncias, que em mapas astrais, que em lendas e na sociedade. Você que não escuta os outros mas o seu próprio coração. Você. É com você que eu falo agora. Onde quer que você esteja, apareça. Talvez você seja a única pessoa que me entenda. O alguém preparado para seguir comigo a caminhada de um dia ou de uma vida inteira. Sei que não vai se importar com o quanto vai durar. Mas sei que com você, que comigo, ou sei lá, a gente pode passar os melhores dias de nossas vidas. Talvez a gente, quem sabe, passe todo o resto, tendo a certeza de que outro alguém como a gente existe e este bando de gente na sociedade estava totalmente enganado quando passou a desacreditar no amor.

Vida leve

Foto: Rute Violante

Pisava leve que era pra não assustar seus sonhos de menina. Não queria crescer, nem usar sapatos de salto alto. Não precisava deles para pisar em nuvens. Foi nelas que aprendeu a andar, na ponta dos pés. Rodopiava de alegria como as borboletas do seu estômago, como iam e vinham os seus sonhos. Pisava leve que era pra não ter medo. Não queria temer o futuro. Não precisava do medo, ele não a levava a nada. Mais que isto, ele impedia de chegar onde ela queria. E ela, chagaria lá de qualquer jeito. Leve. Linda. Moça e bailando como se fosse palco, o cenário da sua vida.


Entre ser e estar

Foto: Miguel Moura

Somos aquilo que somos. Estamos onde estamos. Penso se somos o que somos porque estamos onde estamos. Ou senão, penso se estamos onde estamos porque somos o que somos. As vezes, acho que apenas pareço ser. Não, não pareço. Sou de verdade aquilo que sou. O que é aparente é engano. Eu não sou um engano. Nem equívoco. Sou uma busca incessante pelo acerto, ainda que travestido de erros. Mas acerto. Só não tenho a certeza de onde estou. Até tenho, mas não sei por quê estou aqui. Também, só pra variar, não sei porque sou assim. Desconfio de um motivo ou outro, é verdde. Mas certeza mesmo, não tenho alguma. Por isto, insisto em pensar nestas bobagens tão sérias. Esta estranha relação de estar onde estou com aquilo que sou. Ser o que sou. Aquilo que você é, se é o que é de verdade. A dificuldade de não saber onde se vai deve passar por aí. Deve permear a dúvida de não entender porque estamos onde estamos. Será que somos, de verdade? Espero que, ao menos, tenhamos tentado ser alguma coisa. Mas se vier a ser outro, se for possível isto, o lugar será que muda? Sei onde quero chegar, mas o caminho me parece confuso e estranho. Tento mudar onde estou por aquilo que sou, mas não sei ser outra senão eu mesma. E se continuar sendo eu mesma, o tempo todo, não terei nenhuma outra saída? Ou a saída está justamente em ser aquilo que se é? Penso, logo existo. Arrisco dizer que existir não seja apenas pensar. Disconfio que existir é mover, ainda que seja pra qualquer lugar que não seja qualquer um. Qualquer um é nada. Qualquer lugar, é um específico ou vários, mas é alguma coisa. É tanto quanto eu, quanto você, que não somos qualquer um. Somos o que somos. Estamos onde estamos. E meu pensamento, que não diz exatamente quem sou, não pára de pensar. Não cala, não sara a insistência em saber: estamos onde estamos porque somos o que somos?

Coleção pra ninguém ver

Amores são como os brinquedos que tinha na infância. Não podiam viver espalhados. Não os tinha para ser emprestados, nem doados. Tinha medo de que não tivesse outro. Por isto, não aprendeu a dar os seus brinquedos, assim como não doava seus amores. Guardava-os todos numa caixa, em cima do armário de forma que ninguém pudesse alcançá-los. Quando brincava com eles, o fazia escondida, o segurava com cuidado que era pra não cair e pra ninguém ver. Amores, como aqueles brinquedos, não podiam se arranhar, quebrar em pedaços. Não dava para colar e juntar os cacos de forma a deixá-los perfeitos, como os originais. Amores quebrados, deixavam marcas na alma. Assim como os brinquedos, ficavam rachados. Tanto um quanto outro, se tornavam mais frágeis a cada queda. E ela, assim como nós, mais insegura com eles. Aprendeu a não revelar amores, como havia sido ensinada quando ganhava um brinquedo novo. Os amiguinhos não podiam ficar com inveja, era tão ruim pra eles quanto pra ela mesma. Sentia culpa quando amava de verdade. E pra não doer, pra não perder o sono, deixava o amor quietinho dentro dela que era pra ninguém saber. Claro que vez ou outra alguém desconfiava. Moça bonita, não fica assim, desapaixonada da vida. Mas ela, preferia fingir-se insensível para o mundo, ao invés de mostrar quantos amores ela colecionava ali dentro.

De fora do casulo

Foto: Olhares.com

Saía de seu casulo, espremida, espreguiçava. Esticava as asas que nunca havia usado. Não sabia o que era voar. Mal sabia pra quê serviam aquelas coisas grandes e coloridas que amassadas estavam. Sabia ser lagarta, parada, lenta, acomodada. Agora tinha que aprender a ser borboleta. E borboleta que se preze, não arrasta por muito tempo. Pousa, mas não rasteja. Borboleta voa e sabe muito bem por onde vai. Espreguiçava abandonando a preguiça. Esticava as asas antes de arriscar o vôo. Temia a queda, mas era preciso arriscar. Era hora de sair pra fora, pular a janela. Sair do casulo é sempre o primeiro passo de uma borboleta.

Tudo num regador

Foto: Daniel Oliveira

Aprendeu a regar a rosa com constância. Já havia deixado outras morrerem por maus tratos. Deixou de ouvir a sua avó que sempre dizia que o segredo era cuidar diariamente para que pudesse sobreviver. Pensou que a rosa dispensava esta atenção. Acreditava que bastava molhar assim, quando quisesse. Fazia as coisas quando bem quisesse e entendesse e assim, fazia com as rosas, como se fossem coisas, como se pudessem esperar. Com esta rosa, agiu diferente. Cansada estava de ficar sozinha, descobriu nela a sua companhia. Dividia com ela suas angústias e alegrias. Conversava com ela enquanto regava e a regava todos os dias, sem pressa pra acabar. Aprendeu a cuidar da rosa e aprendeu a ser cuidada por ela. A rosa lhe ensinou o que a avó com suas palavras doces não a haviam convencido. A rosa lhe ensinou a importância do cuidado, do apreço, da atenção. Aprendeu que amar não basta, que admiração não é suficiente. Há de regar e cuidar do que se ama. Há de dar ouvidos o que tem a dizer. Há de perceber a importância e beleza que aquele ser traz para sua vida. Todos os dias, Maria falava com a rosa todos os dias. Mas não falava sozinha. A rosa lhe dava conselhos e lhe confidenciava segredos. Os amores só florescem quando regados, só não morrem se cuidados. Nenhum amor é eterno se não for eterno os instantes que temos com ele, dizia ela. E Maria que aprendeu a cuidar da rosa, aprendia a regar seus amores.

Precariedades

As minhas precariedades me revelam. É o que me falta que me apresenta para os que estão de fora. São os meus limites que me contam quem eu sou. Não é o que tenho de melhor que me revela. Não são as qualidades que tenho que me tornam pessoa. São as minhas fragilidades. Os medos que tenho sou eu. Não os meus talentos, mas aquilo que eu tenho que aprimorar o tempo todo. O que sou de mais precário, é o que mais conta ao meu respeito. É o limite que me devolve a mim mesmo. Onde me esbarro naquilo que sou e que não me deixa ser outro, senão eu mesmo. Por isto, não temo minhas precariedades. Não escondo os meus defeitos. Um dia, Clarice Lispector me contou que eles, ou algum deles, pode ser o meu alicerce e jamais pode ser retirado de mim como se nunca fosse eu. Não que isto seja uma atitude comodista de não querer mudar. Mas são os meus defeitos que me transformam em pessoa. Só quando os olho de frente, é que percebo onde esta a pessoa que sou por trás de cada um deles. Sou frágil. Quebro quando transportada de forma errada. Posso trincar meus valores quando eles não são percebidos pelas pessoas que vivem ao meu redor. Mas não deixo de ser eu mesma, em nenhum destes momentos. Muito menos, aprendi a esconder minhas precariedades para parecer perfeita. Não sou perfeita. Tão pouco pretendo ser. Sou alguém em processo de feitura. Vivo minhas precariedades que irão me levar onde quero chegar: ser pessoa. Ser gente e não indivíduo. As minhas precariedades me revelam. Se as nego, escondo quem eu realmente sou. São as minhas fragilidades que contam a minha estória e me torna alguém especial e preparada para ser tão pessoa quanto você e te ajudar a ser tão pessoa quanto ainda pretendo ser.

Criar pessoas

Foto: Sophia Ferreira

Sempre gostei de desenhar. Quando criança passava horas a fio desenhando pessoas. Gostava de observá-las e transportá-las para o papel. Assim, eu sentia um pouco parte de cada uma delas. Criava traços. Olhares. Aliás, olhares era o que eu mais fazia de parecido. Duvidava de muitas coisas, mas jamais duvidei de um olhar. Ele nunca conseguiu mentir pra mim. A única parte que fala a verdade de alguém é o olhar. E eu era sincera ao reproduzir cada um deles para o meu papel. E ficava ali, imaginando se aquele desenho era um pouco do que a pessoa era de verdade. Pensava se as minhas impressões a respeito de alguém era mesmo aquela pessoa de fato. Admirava o desenho e a alegria das pessoas de verem alguém tão jovem desenhando com tanta dedicação. Aquele era o início da minha busca pelas pessoas. E uma maneira de criá-las de uma maneira mais pura e feliz. Fazê-las mais sinceras e honestas, como o olhar de uma criança com um lápis na mão. É destas crianças que o mundo precisa hoje.


Feito boneca de pano

Foto: Daniel Oliveira

Posso dobrar de um lado para o outro. Pode me jogar no chão. Pisar. Pode me deixar pelos cantos. Pode me empurrar para os fundos. Posso brincar com o cachorro, com o gato ou com as crianças. Alguns adultos também gostam da minha presença. Com o passar do tempo, ganhei uns remendos, confesso. É que de tanto ir pra lá e pra cá, descosturou alguma coisa ali e outra aqui. Faz parte do processo da longevidade. Não sou imortal, mas persisto em viver. Sobrevivo a trancos e barrancos. Me dou bem em casas de sapê e em mansões. Não faço diferenças. Gosto mesmo é de ser abraçada. E quando as pessoas me abraçam, sinto que elas também gostam. Sou prática. Determinada. Olhando assim pra mim, posso parecer frágil. Engano seu. Talvez menos bela que tantas outras bonecas de porcelana que existem por aí. Tenho que admitir que não tenho o corpo de uma Barbie. Não seduzo com tantas outras. Mas nenhuma delas é tão gostosa quanto eu. Pode dormir comigo sem medo de me amassar. Se eu amarrotar, pode me passar que não me queimo. Bom mesmo é sair pra passear. Posso estar em todos os lugares que você quiser. Pode me emprestar pra alguém que tenha carinho. Não sou egoísta e nem infiel. Sempre volto para os abraços de quem me acolhe. Estou sempre com um lindo sorriso no rosto. Te espero deitada na cama ou na cabeceira. Só não me deixe dentro do armário. Gosto de ficar à mostra. Não que seja oferecida, porque não é o meu perfil. Mas prefiro ser vista para fazer as pessoas mais alegres. Sei que tenho este poder. Pouca gente passa despercebido por mim. E ninguém que já esteve comigo, é capaz de me esquecer. Posso te divertir de várias maneiras. Brinco de roda, salto em cama elástica. Te faço companhia quando está sozinho. Dou boa noite e bom dia através do meu olhar. Não existo por nenhum acaso. Não sou tóxica. Nem ofereço perigo. Não uso imãs para atrair metais. Gosto mesmo é de vestidos coloridos e cabelos de lã. De todas as cores. De cores vibrantes e momentos fascinantes. Por que eu gosto mesmo é de felicidade e nada mais.


Vestida de nudez

Foto: Luna

Quero me despir. Ficar mesmo à flor da pele. Quero é tirar as roupas velhas. Jogar fora as meias rasgadas. Quero é renovar meu guarda-roupa. Arrancar o cheiro de mofo e tudo o que dele já ficou impregnado. Quero é cheiro de roupa lavada, saída da máquina. Respirar o aroma de roupa nova que jamais foi usada por alguém. Quero o que pode até ter sido experimentado, mas algo que ainda não foi desgastado e nem desbotado. Sentir na pele o toque macio de mãos firmes e que sabem o que quer. Quero jogar fora também tudo aquilo que não é roupa, mas é igualmente velho. Descartar o inútil ou o que caiu em desuso. Quero é fazer minha moda, do jeito que eu quiser, ainda que “fora de moda”. Cortar os cabelos. Pintar as unhas de azul marinho. Passar batom alaranjado ou violeta. Sair na rua de mini-saia em pleno inverno. Mostrar as pernas. Arrancar suspiros. Despertar olhares. Conquistar paixões. E quem sabe, merecer o amor. Quero merecer o amor, mas que venha com paixão. Quero destes avassaladores. Beijos demorados. Arrepio na nuca. Frio na barriga. Quero esperar o telefone tocar. Quero acordar com sorriso no rosto. Dormir abraçado. Quero estas coisas que não se usam mais e que se tornaram novas nos dias de hoje. Quero tudo isto que não vejo por aí e nem sei onde encontrar. Mas sei que quero. Quero é falar bobagens com alguém que me entenda. Quero rir de mim mesma até o dia amanhecer. E de manhã, deitar nos ombros que irão me sustentar quando eu quiser chorar ou morrer de rir. Beijar a nuca. Aguçar o cheiro. Sentir o paladar de um beijo sem fim. Quero aquela coisa que só sentem os apaixonados. Sonhar acordado. Acordar sonhando. Quero é não viver os pesadelos que vivem os que não acreditam no amor. Trocar olhares e confidências. Dividir segredos. Atrair desejo. Quero é voltar a ser adolescente no corpo maduro de mulher. Quero é ter a lucidez maluca de quem ama. Quero trocar de roupas de portas abertas. Sem esconder a minha vontade de mudar. Sem esconder a minha nudez que é quem sou realmente. Quero assumir meus sonhos. Quero arrombar meus planos. Quero pagar o preço de uma vida que vale a pena. Escrever histórias. Abrir caminhos. Construir laços. Desfazer os nós. Quero viver o novo. Pode ser o velho, desde que seja renovado e diferente. Jamais o mesmo. Mudar de endereço. Pintar o cabelo. Tatuar a pele. Quero é desbravar o mundo, ainda que seja o meu mundo interior. Renovar esperanças. Resgatar a fé. Reacender o amor. Viver a vida que acontece do lado de fora de uma maneira totalmente sincera com o que quero viver aqui dentro. Quero abrir as janelas. Olhar pra fora. Perceber o quanto acontece aqui, ali e em todo lugar. Quero resgatar amigos. Cultivar os antigos e os mais recentes. Regar o jardim. Apreciar as borboletas. Quero é me apresentar. Falar em público ou em silêncio. Quero é jamais passar despercebida. Ser vista. Notada. Quero é ser reconhecida e não julgada. Jamais ser condenada por aquilo que nunca fiz. Quero ouvir verdades. Quero assumir riscos. Arriscar perigos. Desafiar inimigos. Doar emoções. Quero é chorar de alegria com a alegria dos outros. Quero é doar minha alegria pra quem souber carrega-la comigo. Sair cantando. Morrer de alegria. Quero é cair na folia não apenas no carnaval. Pular carnaval o ano inteiro. Comemorar vitórias até mesmo nos fracassos. Ouvir minha música preferida no rádio. Rezar no meio do dia. Dormir com a consciência tranqüila. Quero paz pra tudo que é lado. Estar com os amigos. Me apaixonar por eles todos os dias da minha vida. Quero é dividir meus dias com quem merece. Conhecer a família que sonho ter. Amar demasiadamente as pessoas. Perdoar aquilo que não sai como eu imagino. Acreditar no impossível. Quero é renovação. Quero é mudar de idéia quando eu tiver vontade. Quero é ter novas crenças. Quero é depositar confiança nas pessoas sem a chance de me arrepender depois. Me envolver de pessoas boas de alma e coração, embora ambas sejam a mesma coisa. Quero me despir sem medo de abuso, sem críticas. Quero jogar fora as velhas roupas. Sair da moda que os outros acham que é moda. Fazer acontecer do meu jeito. Celebrar o céu azul. Agradecer por mais um dia. Admirar um pássaro cantando. Declarar meu grande amor. Quero mesmo é conhece-lo antes disto. Quero é olhar pra alguém e ter a certeza de que valerá a pena passar o resto da minha vida junto dele. Respeitar defeitos. Admirar qualidades. Aceitar manias. Rir de suas piadas. Dançar a noite inteira agarradinho. Dormir abraçado até perder a hora. Quero diferente. Alguém que eu já conheça. Alguém por quem eu já tenha me apaixonado. Mas quero de uma maneira nova, desconhecida. Melhor. Maior. Sincero. Honesto. Cúmplice. Quero um encontro de almas e não de corpos, embora os corpos unidos sejam boa coisa. Quero por inteiro e não pela metade. Quero hoje e não amanhã. Antes que seja tarde. Ainda que avance os anos. Quero é não deixar de vive-lo. Segurar o braço. Pegar no laço. Puxar pela nuca. Dar as mãos e seguir junto. Quero é descartar o velho e buscar o novo. O amor de forma distinta. Sentimentos nobres. Sensações inéditas. Rabiscar o passado. Corrigir os erros. Quero é crescer. Quero ir adiante. Quero é despir minhas falhas, minha arrogância, minha independência. Quero é me entregar a vida, ao outro, ser um pouco de alguém e não só de mim mesma. Quero é me jogar como quem acredita que estará segura. Quero a coragem e a audácia de quem não vacila. Tirar o mofo, a poeira. Sacudir o colchão. Arrumar a cama. Quero é vestir-me do meu perfume preferido e do amor próprio. E depois, caminhar como quem não vacila e sabe exatamente onde quer chegar.


O gozo da vida

Foto: Ana Bile

O riso provoca a alegria. O riso insinua a felicidade. Ele é cúmplice, aproxima, desperta. O riso desperta desejo. O riso é revelador da intimidade com o outro. É parceiro no silêncio das palavras. É som que ressoa pela casa. Contamina de riso o ambiente. Vira epidemia de risos sem sentido, embora todos os risos são regados de sentido o tempo todo. O riso é gargalhada. O riso é disfarce que convence. Convence da alegria que a gente nem sente e que passa a sentir a partir do riso. O riso é o começo de tudo. Quisera que também fosse o final. Devíamos enterrar pessoas, histórias e relacionamentos com uma gostosa risada. O riso é o valor que damos às coisas. O riso deixa à mostra o que valeu a pena. Tudo pode ir embora, o riso permanece. É o que resta de tudo o que se foi. Ele sempre acontece. Vezes aqui dentro. Vezes pro lado de fora. E é preciso externalizar o riso. Colocar pra fora a risada que se sente aqui dentro e partilhar o riso com quem já aprendeu a rir de si mesmo e tantos outros. O riso é para o outro, não do outro. Rir do outro é deboche, não é riso. Falo do riso que ama, que acaricia os afetos. O riso das afinidades. O riso do reconhecimento. O riso da compreensão. É o riso que mantém viva a chama da vida. Quem não ri, parece morto. Morreu com batimentos cardíacos que não mais oscilam. Já o riso é que acelera o coração, que causa a arritmia cardíaca necessária para viver as emoções. A arritmia da vida. Esta música que só o riso possibilita. O riso é portas e janelas escancaradas. O riso olha para o lado de fora e chama pra dentro. O riso é rua, festa, muita gente e alegria. O riso nunca é solitário ainda que dado sozinho. O riso é dois, três, vários. O riso é a delícia da vida. O sabor e o tempero que afasta a falta de gosto. Tempera desgostos. O riso dá gosto. Gosto do sexo, da amizade, da conversa. O gosto do bate-papo com os amigos. O gosto de uma confidência. O gosto de um abraço. O gosto de um beijo esperado. Ou inesperado. O gosto do gosto. O riso é o gosto. O gozo da vida.

Desejos e sonhos

Meus desejos têm pressa, urgência pra acontecer. São necessários e imediatos. Satisfazem minhas vontades secretas. Saciam a minha sede que não pode esperar. Meus desejos não esperam pra acontecer. Eles acontecem de uma forma ou de outra. E têm pressa, como a pressa da hora marcada. Tenho dependência dos meus desejos para me sentir satisfeita, realizada. Diferente e mais adiante, estão meus sonhos. São um guia, um motivo para seguir em frente. Me orientam, me animam, me dão fôlego novo para a caminhada da vida. Meus sonhos estão à minha espera, mesmo que eu não apresse o passo. Não preciso realizá-los para estar feliz, sou feliz por sonhar meus sonhos. Meus sonhos são maiores do que eu. Meus desejos não. São pequenos e intensos. Meus sonhos são grandes e profundos. Sou aquilo que sonho. O que eu desejo, são apenas pedaços de mim que me distraem no caminho para os meus sonhos.

Coisas de Clarice

"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma".

Coisas de Clarice

"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma".

A arte de se ter um amigo

Embora tivesse este nome, não tinha asas. Embora não tivesse asas, soube voar. Voou para os detalhes da minha vida, para as verdades que tenho aqui dentro. Ouviu desabafos, secou minhas lágrimas. Dividiu minhas dores e as suas próprias. Soube ser amigo. Soube ser fiel. Embora pequeno, muitas vezes foi pai ou mãe. Embora um cachorro, foi a companhia que muitos namorados não souberam ser. Foi feliz enquanto pode. Saltou com os pássaros, caçou insetos. Escondeu biscoitos na terra. Pegou carrapichos. Mordeu canelas, latiu pessoas, comemorou vitórias. Foi seletivo nas amizades, me ensinando a não confiar em qualquer pessoa. Suportou as dores, o preconceito, a velhice. Não desistiu fácil diante da vida, muito menos dos obstáculos. Soube amar quem o amava e ignorar aqueles que dele não gostavam. Também aprendi isto com ele. Me doou sua vida, sua existência e sua companhia. Acompanhou minhas vitórias e até mesmo meus fracassos. Angústias e decepções. Não era apenas um cachorro. Parecia gente. Mais parecido comigo que qualquer outra pessoa. Me entendia bem melhor que todos ao meu redor. E me levava adiante, mesmo quando não mais conseguia andar com segurança. Me fazia sentir segura a cada retorno pra casa. Ao seu lado, nunca estive só. E tenho certeza que nem ele estava só enquanto estive com ele. Estamos juntos, mesmo depois que ele se foi. Não foi voando porque suas patas, doídas, já não impulsionavam seu voo. Mas foi em paz, longe e agora deve correr tranquilo entre os arbustos, perseguir as borboletas e repousar no colo de Deus.
Homenagem ao Ícaro, meu cãozinho Yorkshire que se foi há 3 meses aos 11 anos de idade.

Vontade danada

Foto: Inês Sacadura

Hoje eu acordei com uma vontade danada de sair sem rumo. De tomar café na padaria. De pedalar de bicicleta por uma estrada à beira das montanhas. De não ouvir meu nome. Levar apenas meu sobrenome pra passear por lugares aparentemente italianos em terras brasileiras. Acordei pensando que sou mais gente do que tenho sido. Com uma vontade danada de almoçar num piquenique acompanhada por mim mesma. Um almoço em silêncio, ouvindo apenas o canto dos passáros. Vontade danada de ver o vento bater no rosto. Quisera eu saber pilotar uma moto pra sair quase que voando de braços abertos feito Cristo Redentor. Uma redenção que eu preciso fazer de mim mesma. Dos meus medos. Dos meus erros e até mesmo dos acertos. Uma vontade danada de me redimir da perfeição. Do controle das coisas. Da previsão do futuro. Da ansiedade do que posso ser. Porque hoje eu tô com uma vontade danada de não ser nada disto. Uma vontade de ser eu mesma. De escrever bobagens. De dar gargalhadas de mim mesma e dos outros sem o menor compromisso com a seriedade. De dançar até doer os pés e ficar descalça que é para dançar mais além. Uma vontade danada de deitar na grama e pensar na vida. Não no futuro. Pensar apenas em tudo aquilo que posso ver. Vontade danada de passar a tarde comigo mesma e assim, depois de muito bem acompanhada me tornar uma excelente companhia para alguém. Este alguém por quem eu sinto uma vontade danada de ter agora. Esta vontade do abraço e do beijo que eu sinto. Esta vontade de simplesmente não fazer nada ao lado de alguém que pode ser nada mais que o suficiente e isto me basta pra matar a vontade danada que eu tenho de viver e ser feliz.


Desnecessário

Foto: Vieirinha

Eu danço...


Danço como tantas outras. Danço como os outros. Moços tolos que não sabem tirar uma dama pra dançar. Danço fora do ritmo. Naquele ritmo que você insiste em tocar. E eu só queria tocar você. Dancei. Não como todas as outras porque cada uma tem seu jeito de dançar. Dois pra lá. Dois pra cá. Bolero. Tango. Salsa. Forró. Menos a valsa que embala os amantes. Danço fora do seu ritmo. Talvez porque você não consiga acompanhar meu passo. Embora no mesmo espaço, há descompasso entre nós dois. Danço, embora tímida. Embora louca por você. Queria dançar contigo a noite inteira. Um samba de gafieira até o sol nascer. Virar a madrugada, tomar uma gelada do jeito que Deus quiser. Danço porque um dia acreditei que viesse pra pista comigo. Pensei que soubesse me guiar pros seus passos, sem pisar no meu pé. Doeu. Menos do que a vontade de te ter e não te encontrar. Dói menos que insistir que você vai voltar pra me tirar pra dançar. Ah, se eu soubesse sentar pra esperar, esperaria você chegar. Mas tenho pressa. Antes que a música acabe, quero um par. Era você enquanto eu pude querer, agora não posso mais. Preciso esquecer a dança que ensaiei com você. As noites que perdi pensando. A insônia que ganhei sonhando acordada. Todas as vezes que me peguei cantando nós dois, foi em vão. Agora estou aqui na pista, numa melodia que não sei cantar. Só sei dançar deste jeito e nisto terei prazer, mesmo que seja sem você.